#28 - Existência e queda de cabelo: reflexões para algum final de ano
Chega o dia em que olhamos ao espelho e o rosto que nos encara de volta possui uma ausência...
Chega o dia em que olhamos ao espelho e o rosto que nos encara de volta possui uma ausência. A realização (o espanto) não é meramente estética mas de ordem mais profunda e enigmática. Então aparecem as primeiras questões: “O que é que aconteceu comigo? Como foi que não percebi isto a tempo?” - são melancólicas, quase lastimosas e patéticas - na sombra, ecoa uma indagação ainda mais tenebrosa e estridente (exageradamente estridente) que teme ser desvelada, mas que ressoa incansável, para, por fim, anunciar-se: O que fiz da minha vida?
Naturalmente, as questões que nos fazemos viram diálogos e surgem novas perguntas; o nosso diálogo interno costuma ser uma estrada ramificada e tortuosa - neste declive é difícil evitar uma postura nostálgica (quase anacrônica) e da mesma forma como olhamos para o passado com certo receio, nos vemos tentados a lançar-nos como um bumerangue 60 anos à frente e nos questionar novamente ao nosso Eu do futuro: "O que fiz da minha vida?". Uma projeção desse tipo pode ser um exercício perigoso mas que acredito ser necessário. A la larga, vamos nos tornando em uma máquina do tempo inquieta, avançando e retrocedendo para compreender-nos - não há nada de condenável nisto.
Ressoa ainda mais estridente: “O que fiz da minha vida?!”
Como responder a esta pergunta? Assim como quando perdemos os cabelos e nos vemos diante da finitude, a primeira reação diante deste espanto não é a de responder mas sim de resistir: “Há tempo de se manter o que ainda há?” Pergunto. Sim, mas o que se perdeu já se foi: “não há volta atrás” me respondem. Os fios de cabelo são como as horas que se esvaíram. “Quiçá eu poderia haver percebido antes e conservado o que eu tinha” - naturalmente é isto o que se pensa diante da vastidão do que passou. “Não há volta atrás”: eis uma condena e uma libertação.
O patético é que o espanto chega sem avisar, nos aparece em um dia qualquer; assemelha-se àquilo que Camus chamou de sentimento do absurdo em “O Mito de Sísifo”.
“Em todos os dias de uma vida sem brilho, o tempo nos leva. Mas sempre chega uma hora em que temos de levá-lo. Vivemos no futuro: “amanhã”, “mais tarde”, “quando você conseguir uma posição”, “com o tempo vai entender”. Estas inconsequências são admiráveis, porque afinal trata-se de morrer. Chega o dia em que o homem constata ou diz que tem trinta anos. Afirma assim a sua juventude. Mas, no mesmo movimento, situa-se em relação ao tempo”
É neste situar-se em relação ao tempo, ocupando nele o seu lugar, onde se encontra o sujeito que se faz a questão estridente. De forma quase ritualística voltamos ano após ano ou década após década (depende do nível de neurose) a ela. However, em todo momento da vida ela pode esbarra-nos no meio da rua ou espantar-nos com o nosso reflexo diante do espelho. Por isso há tantos que se escapam de ver seu próprio reflexo.
Eu sou caçador de mim mesmo, por isso escolho após o espanto e a resistência, novamente retomar um movimento que tencione uma resposta. J.L Borges, em um breve texto intitulado “Borges y yo” escreveu: “mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del olvido, o del otro”. O que nos diz este verso? Há uma luta incessante entre Borges e o seu Outro, um embate identitário que constituía quem ele era.
Não afirmo que todos estejamos com o status “inadequado” na biografia do Instagram mas há nesta tensão identitária Borgiana um elemento comum para todos nós: somos muitos, somos multiplicidade e não uma unidade; isso parece moeda corrente ou filosofia que se vende como banana na feira, mas há portas que devemos ir abrindo para iluminar nossa jornada, por mais que estas já tenham sido muito bem exploradas.
O personagem do livro “Rayuela” de Júlio Cortazar, chamado Horácio Oliveira, procurava desesperadamente o seu centro - como referência a um conhecimento final de si mesmo, ou uma saída para a inadequação - mas ele nunca o encontrara; o círculo que Platão descreve em sua carta VII nunca se completa - somos por natureza incompletos e este vazio que nos habita (ou que habitamos), provavelmente (as probabilidades são tantas) nunca há de se preencher: nem as promessas de um amor que nos complete e nem a ambição por alcançar a verdade serão suficientes.
Então a questão que me faço diante do espelho é como uma espinha que se dilata nos anéis do tempo, acabando por deixar-me de joelho pela sua gravidade e sua impossibilidade. Como responder ao que fiz da minha vida se fui muitos? Se “sou multidões”?
Sabemos então que o “mundo é um moinho” e que
Em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Porém, por mais que sejamos muitos e que vivamos muitas vidas em uma vida, ainda parecemos exigir-nos uma resposta mais concreta para a questão estridente; e haverá resposta possível? Creio que há lacunas as quais devemos explorar.
Por exemplo: é a existência um fardo? Devo fazer algo de minha existência?
Imaginemos alguém que responda que não, que a existência não deve se subjugar a ter um significado ou uma utilidade, pois em certo sentido, aqui estamos falando em utilidade.
Digamos que esta pessoa acentue sua resposta e a justifique e nos jogue mais algumas coisas na cara quando a olhemos com desdenho: “por que haveríamos de fazer algo de nossa existência?” nos pergunta, “Por que esta autoexigência por vivenciar o notável? Por haver trilhado a vida em um movimento justificável, com sentido e propósito?”, “Por que a necessidade da realização?” e, por fim: “Por que a necessidade de sentido?”
Regresso à questão estridente: O que fiz da minha vida?
Esta questão somente terá sentido na medida em que algo tenha de ser feito; se a existência não possui um sentido e os fios de cabelo são apenas um atributo passageiro e trivial, a questão estridente é infértil e não há do que se arrepender, não há o que lamentar.
Me demoro no espelho após ter pensado tudo isto e me sinto reconciliado comigo mesmo. Só que eu ainda carrego a existência num carrinho de mão, ainda me demando um movimento, ainda me exijo um reconhecimento e um sentido. Vejo para todos lados e encontro pessoas apaixonadas pelo que fazem, dizendo para “viver uma vida que valha a pena”, que a tua vida “deve ser um livro que dê gosto de ser lido” e toda essa baboseira dessa sociedade doente por demonstrar felicidade e um falso bem-estar; o sentido nos é forçado pela goela e tudo isso acaba entrando pelos poros e nos deixando de joelhos mais uma vez.
Como escapar a esta angústia?
Uma lição nos deixa Montaigne quando escreve: “Todo e qualquer movimento nos revela”. Observem que ele não diz “todo e qualquer movimento nos justifica” pois não há justificativas suficientes para a nossa existência. Em todo e qualquer movimento eu me revelo, eu me conheço, eu me experimento; daí que se preze por uma ética da quantidade e não da qualidade; ter feito coisas, independente do quão bem ou mal, mas ter se movimentado para poder revelar-se; sem atribuir um sentido, uma direção, ou um valor total como tentamos fazer quando nos perguntamos tão lastimosamente “o que fiz da minha vida?”
Esta lição vai de encontro com a máxima Nietzscheana: “Torna-te quem tu és” a qual é como um antídoto para as exigências de um movimento justificado e de uma vida com sentido. “Tornar-se quem se é” trata de experimentar: é a procura por um saber e um fazer que corresponda à nossa verdade e a nosso querer.
Edição #28 do Desfilosofia
29/12/2023
Por Francisco Arozena
Francisco, adorei o seu texto. Pareceu-me um passeio pelo que você ‘está sendo’ neste exato momento...
Será que criamos a ilusão do tempo para nos dar um norte, um motivo, um objetivo? Tenho pensado sobre isto.
O tempo, disse Quintana, o tempo é indivisível. De forma que toda mudança não é externa, é interna. O tempo não muda. Teremos nós que mudar.
Até breve!