Nota preliminar: Vou migrar para aqui alguns textos antigos. Não me atrevi a alterar nada, somente fiz algumas correções de gramática. Este texto é de Janeiro de 2023, alguns meses após ter retornado do meu mochilão sozinho.
Freud pisou no chão de Atenas centenas de anos antes que eu pisasse.
O estranho é que ele nem queria ir para Atenas e sim para Corfu — uma ilha que fica na costa noroeste da Grécia. Era uma viagem que ele realizava todo ano com seu irmão durante algumas semanas; mas as circunstâncias, a falta de um passaporte e um destino tétrico o levaram a escalar o alto da Acrópole em um dia de sol, como tantos os houve em Atenas.
— Então tudo isto é real? Assim como aprendemos no tempo da escola? Se perguntou o pai da psicanálise ao observar o edifício de dois mil e quinhentos anos, o Parthenon.
…
Eu subi a Acrópole por primeira vez assim que cheguei em Atenas, era um domingo em que havia chovido aos cântaros e no qual todos os ingressos para os monumentos eram grátis. Subi sozinho, com os olhos chorosos, mas sem me perguntar se tudo aquilo era real… aliás, não perguntei nada a ninguém, somente escalei e senti dor em meus joelhos pelo cansaço que Roma havia me incutido dias atrás.
— Sei lá Sigmund, tu acha que pra entender esse edifício temos que pensar em termos de realidade ou ficção? Lhe perguntei.
E ele me olhou e sem rodeios me respondeu:
— Não, nada disto tem gosto de realidade. Esse mármore já se cai e nós nem compreendemos bem como que está de pé ainda.
Mas quase cem anos nos separam, e diferente de Freud, eu não subi apenas uma vez mas duas o alto da Acrópole, e dessa segunda vez não era Freud que me acompanhava: era algo assim como um espectro, estava entre uma filosofa epicurista e um raio de luz tecknicolor, e tinha uma voz e uma boca: isto os dias não nos mostram, isto a lua não ilumina…
Dias antes de haver subido por segunda vez a Acrópole, o bairro de Plaka nos viu girar e girar, dançamos e rimos, nos beijamos em esquinas e nos sentamos em escadas milenares; lá no alto o Parthenon, aqui embaixo Freud, souvlakis, um vinho rosa e barato, don’t you like red wine? Lhe perguntava eu enquanto decidíamos qual seria o vinho da vez.
E logo soava Vienna do Billy Joel em algum café da manhã ensolarado, eu lhe contava que tocava piano e que aprenderia aquela música assim que chegasse em casa, que escreveria cartas pois me doía essa distância inevitável que se assomava pelas frestas da alma.
O fio que nos unia em Atenas não deixaria de existir, nem que joguem bombas em Atenas eu deixaria de pensar naquele entardecer na praia: o sol descendo e a cada segundo nossos corpos se aproximando mais e mais, sentindo a rotação do orbe e o centro da terra nos unindo sem expressar som ou vontade alguma: era esta a imensidão.
— I don’t want to go home. Disse Rachel.
— Me neither. Lhe respondi.
Naquele dia da praia ficamos até escurecer. Estávamos Brianna, Rachel e eu, e então Brianna olhou para o alto e indicou uma pequena estrela que aparecia no céu; Rachel já não estava ali e tampouco eu.
— The sun will rise tomorrow, that’s the most crazy thing of life, and we don’t even stop to think about it. Disse R…
— That’s the beauty and horror about life — lhe falei — cause even though we are suffering we need to see the sun arrising and everything passing.
— Everything must pass.
— Like Harrison said.
— Like Rachel say.
Só que eu sabia que Rachel se deslizava por canais de energia cósmica, unhas desfeitas, um cabelo bagunçado e uma vontade voraz de fazer sexo o tempo inteiro; ela saboreava a liberdade como se saboreia um terremoto desde longe, vendo que prontamente isso se faria sentir por todos.
— Im a waitress. Me disse.
— And do you like it? Perguntei.
— Yeah, there’s a lot of tips.
E eram os cafés da manhã ao ar livre, uma necessidade imperiosa de sentir o sol na cabeça, de ver o gatinho que aparecia pelos telhados que rodeavam o hostel, de comer sanduiches e se lambuzar com o tomate que saltava para todos os lados; um vape sempre em sua mão, o riso de marmota, os dedos das mãos longos como serpentes tristes e uma inocência emascarada; um temor de sentir too much, de ser refém de um amor descompromissado.
— We own Athens.
— Yes, we do. Respondi.
Então o céu de Atenas nos revelava sonhos de deuses e nos mandava sinais da eternidade e nos fazia prometer coisas que não cumpriríamos.
Eu estava exausto quando chegamos ao topo, lá, onde o Parthenon se faz mais que um mero desenho, onde seu mármore respira, onde as pedras por fim tomam um significado. A garrafinha de água que acompanha todo bom turista não estava entre nossos itens, but its all good, por que não éramos turistas, éramos wanderers.
Fomos então tomar água em um bebedouro que havia ali na Acrópole e eu quis fazer uma graça mostrando à Rachel como eu cuspia água pelo fiozinho que tenho entre os dentes e nisso acabei molhando um chinês que estava passando. Rimos tanto que nos doeu a barriga e logo depois disso Rachel me deu a ideia.
Eu sempre levava meu caderno comigo e tudo o que bastava para realizar essa ideia era um lápis e uma folha.
Então nos sentamos em uma pedra e começamos a escrever, a olhar para a cidade que se revelava a nossos olhos lá embaixo, a rir baixinho, a olhar-nos, a sentir tristeza e naturalmente quisemos guardar aquele papel com a gente, a possuir aquela obra que era nossa e ao mesmo não era: uma lista com segredos de tudo o que deveria ser feito antes de ir embora de Atenas, com um último conselho singelo:
And last but not lest, fuck you!
Mas não! Aquilo já não nos pertencia, assim como nada daquilo nos pertencia; pertencia a Atena, a Deusa que deu nome à cidade, a deusa da justiça, e nossa nota era uma oferenda para ela e para outros viajantes que por ali passassem; inevitavelmente era também nossa despedida, um adeus que entregava: tudo se transfere, tudo se passa, até um amor que dura dois, três, quem sabe quatro dias…
Dedicated to Rachel & Brianna.